domingo, 28 de fevereiro de 2010

A Herança Intelectual da Sociologia

APROFUNDAMENTO

A Herança Intelectual da Sociologia
Florestan Fernandes

A Sociologia não se limita ao estudo das condições de existência social dos seres humanos. Todavia, essa constitui a porção mais fascinante e importante de seu objeto. Ao se falar do homem como objeto de indagações, essas indagações começam a adquirir consistência científica no mundo moderno, graças à extensão dos princípios e do método da ciência à investigação das condições de existência social dos seres humanos. O homem sempre foi o principal objeto da curiosidade humana.

A Sociologia não se afirma primeiro como explicação científica e, somente depois, como forma cultural de concepção do mundo. Foi o inverso que se deu na realidade. Ela nasce e se desenvolve como um dos florescimentos intelectuais mais complicados das situações de existência nas modernas sociedades industriais e de classes. Conservadores, reformistas ou revolucionários, aspiravam fazer do conhecimento sociológico um instrumento da ação.

A Sociologia constitui um produto cultural das fermentações intelectuais provocadas pelas revoluções industriais e político-sociais, que abalaram o mundo ocidental moderno.

O desenvolvimento do sistema das ciências se tem processado sob duas ordens de fatores. Uma, de natureza especificamente positivo-racional, ligada com as exigências da própria marcha das investigações científicas. Outra, de natureza ultracientífica, constituída pelo conjunto das necessidades práticas (econômicas, culturais e sociais), que podem ou precisam ser satisfeitas, de modo direto ou indireto, mediante a descoberta ou utilização de conhecimentos científicos.

O melhor seria tentar compreender o espírito da “Sociologia do século XIX”. 1º) as relações de emergência da Sociologia com os efeitos intelectuais dos processos de secularização dos modos de conceber e de explicar o mundo; 2º) as repercussões das tendências de racionalização e dos movimentos sociais na delimitação do horizonte intelectual dos pioneiros ou dos fundadores da Sociologia; 3º) a natureza dos motivos e das ambições intelectuais, inerentes às primeiras tentativas de aproveitar os princípios do conhecimento científico na explicação da vida humana em sociedade.

A explicação sociológica exige, como requisito essencial, um estado de espírito que permita entender a vida em sociedade como estando submetida a uma ordem, produzida pelo próprio concurso das condições, fatores e produtos da vida social. Tal estado de espírito no mundo moderno se constitui graças à desagregação da sociedade feudal e à evolução do sistema capitalista de produção, com sua economia de mercado e a correspondente expansão das atividades urbanas. Estes processos histórico-sociais se desenrolaram de modo a ampliar atitudes secularizadas de apreciação dos móveis das ações humanas, do significado dos valores e da eficiência das instituições.

No plano puramente intelectual, a secularização dos modos de conceber e de explicar o mundo está relacionada com transformações radicais da mentalidade média. Alargamento do âmbito da percepção social além dos limites do que era sancionado pela Tradição, pela Religião ou pela Metafísica. Todo sujeito percebe o mundo exterior e as próprias tendências egotistas através de categorias de pensamento herdadas da sociedade em que vive. Qualquer análise de conduta, da sociedade ou do destino humano esbarra com o caráter “absoluto”, “inatingível” e “sagrado” das normas, dos valores e das instituições sociais, reconhecidos culturalmente. Nas condições de inquietação e instabilidade, ligadas À desagregação da sociedade medieval e à formação do mundo moderno, as inconsistências daquelas categorias absolutas e estáticas do pensamento se fizeram sentir com rapidez. Impunham-se tarefas que pressupunham novos padrões de apreciação axiológica, mais ou menos livres dos influxos da tradição ou de concepções providencialistas. Portanto, o que se poderia designar como consciência realista das condições de existência emerge e progride através de exigências de novas situações de vida, mais complexas e instáveis. Daí a capacidade de julgar, de decidir e de agir passa a depender, de modo crescente, do grau de consciência por ele alcançado sobre os móveis das ações dos outros ou os efeitos das possíveis alterações da estrutura e funcionamento das instituições.

A essa transformação básica do horizonte intelectual médio é preciso acrescentar outras duas conseqüências, a ela relacionadas. De um lado, as modificações que se produziram na natureza e nos alvos do conhecimento do senso comum; de outro, as inovações que se manifestaram no seio do pensamento racional sistemático. Na verdade, foi o conhecimento do senso comum que se expôs e teve de enfrentar as exigências mais profundas e imediatas das novas situações de existência social.

As repercussões da secularização dos modos de perceber e de explicar o mundo no pensamento racional sistemático são, entretanto, melhor conhecidas. Mas mesmo aqui o processo de transformação foi mais rápido nas esferas do pensamento racional vinculadas de modo imediato às situações práticas de existência, como se pode comprovar pelo confronto do Direito Positivo com o da Filosofia. Coube ao pensamento racional sistemático seja ordenar e dar expressão lógica às elaborações realmente significativas do conhecimento do senso comum, seja estender os critérios de explicação secular do mundo a objetos e a temas que não caem dentro dos limites da reflexão prática.

Em suma, aos efeitos do processo de secularização da cultura na modificação da mentalidade média, do conhecimento do senso comum e do pensamento racional sistemático devem-se a formação do ponto de vista sociológico, a noção de que a vida humana em sociedade está sujeita a uma ordem social e as primeiras tentativas de explicação realista dos fenômenos de convivência humana. As formas e natureza da ordem social, se tornaram demasiado variadas e complexas, a ponto de exigirem o recurso contínuo à investigação sistemática e a formação de uma disciplina intelectual específica. Tome-se Augusto Comte como referência. Sua indagações correspondiam a questões que não poderiam ser formuladas e respondidas no âmbito do conhecimento do senso comum ou da Filosofia pré-científica. O que é a ordem social? Como ela se constitui? Como ela se mantém? Como ela se transforma? Em outras palavras, com o aparecimento da Sociologia não só se amplia o sistema das ciências, como se descobrem meios intelectuais plenamente adequados às necessidades de desenvolvimento criador ou construtivo dos modos secularizados de perceber e explicar o mundo.

As repercussões das tendências de racionalização e dos movimentos sociais na delimitação do horizonte intelectual dos pioneiros e dos fundadores da Sociologia se fizeram sentir em dois planos distintos. No plano teórico, elas levaram à convicção de que as regularidades de coexistência e de sucessão, que permitem entender e explicar a ordem dos fenômenos nas manifestações da vida social, não possuem uma natureza rígida e mecânica. É certo que tal ordem foi descrita como algo que exclui tanto os influxos da providência, quanto o arbítrio dos indivíduos ou de grupos de indivíduos. Mas isso não impedia meios eficazes de intervenção. Estava-se na grande era do pensamento inventivo e do humanitarismo. Conservadores, liberais ou socialistas, todos se interessavam pelas descobertas das ciências, e por suas aplicações nas indústrias, nos serviços públicos e nas relações humanas. Daí 1°) o de descrever a ordem social como um sistema dotado de organização estrutural e funcional própria, cuja alteração interna se processaria através da operação de mecanismos inerentes à organização do sistema; 2º) o de descobrir as condições dentro das quais a atividade humana poderia tirar determinados proveitos da plasticidade relativa da ordem social, mediante o aproveitamento dos conhecimentos fornecidos pela análise dos referidos mecanismos de mudança social.

No plano prático, técnicas de manipulação ou de controle das situações de existência-social.

Quanto à natureza dos motivos e das ambições intelectuais, inerentes às primeiras tentativas de explicar a vida humana em sociedade de forma objetiva: eles eram antes filosóficos que científicos. O que se costuma chamar de ciências sociais, com referência aos Enciclopedistas, ou de Sociologia, em face de autores como Comte, Stuart Mill ou Spencer, é, propriamente falando, uma Filosofia da Ação Humana.

Filosofia da História, quando procura associar o presente ao passado e descobrir as “leis” do desenvolvimento do espírito humano. Ela se torna uma Filosofia Social, quando pretende evidenciar as funções “civilizadoras” da vida em sociedade, estabelecendo as primeiras vinculações dinâmicas, de sentido universal, da natureza humana com as situações de convivência social. Filosofia Política, quando liga, por meio da análise e da crítica dos sistemas políticos modernos, os resultados dos tipos de reflexão e de indagações filosóficas, a que poderiam conduzir a Filosofia da História e a Filosofia Social.

Vê-se, portanto, que a Filosofia da Ação Humana era coroada por uma Filosofia Política, em cuja base estavam uma Filosofia da História e uma Filosofia Social. O pensamento filosófico moderno se encaminhou da reflexão abstrata para a indagação empírica e para a análise indutiva.

Portanto, os móveis e as ambições intelectuais, que deram sentido e orientaram as investigações pioneiras no campo da Sociologia, possuíam natureza filosófica, ainda que esta fosse corrigida e ampliada pelas influências do pensamento científico. Isso não implica, porém, que se condene e rejeite, por “filosófica”, a Sociologia do século XIX. A constituição da Sociologia, como disciplina científica, seria inconcebível se aqueles motivos e ambições intelectuais, de natureza filosófica, não tivessem inspirado e dirigido as modernas indagações sobre a natureza humana e suas relações de existência social.

Primeiro, a transição do “ponto de vista normativo” para o “ponto de vista positivo”, na interpretação dos fenômenos sociais. Essa transição foi condicionada e impulsionada pela secularização dos modos de conceber e de explicar o mundo nas sociedades modernas. No que concerne à explicação da natureza humana, ela se processou, intelectualmente, pela transformação da antiga Metafísica em Filosofia da Ação Humana. E no seio desta que surgiu e se desenvolveu a tendência a considerar as situações sociais de existência através de instâncias empíricas, pelo recurso à análise indutiva e com um sério esforço para conter influências perceptíveis dos sentimentos, de idéias preconcebidas ou de valorizações etnocêntricas nas atividades cognitivas.

Segundo, a natureza humana só poderia ser conhecida e interpretada sociologicamente como parte de um sistema de relações com sentido, pois o comportamento dos seres humanos, individual ou coletivamente, é regulado por normas, valores e instituições sociais. Em conseqüência, a observação, a descrição e a interpretação da vida social humana exigem categorias de pensamento especiais, que não podiam ser tomadas ao conhecimento físico do mundo exterior, voltado para um sistema de relações destituídas de sentido. Os conceitos e a explicação científica das atividades sociais humanas são delimitados, formalmente, pelo universo empírico de sentido a que se referem.

A Filosofia da Ação Humana não serviu, apenas, de veículo à introdução do espírito científico no estudo da vida social humana. Ela própria representa uma fase construtiva do desenvolvimento da Sociologia.



Vocabulário:

Axiológico - que constitui ou diz respeito a um valor.

Cognitivo - relativo ao conhecimento, à cognição.

Empírico - baseado na experiência e na observação, metódicas ou não.

Etnocentrismo - visão de mundo característica de quem considera o seu grupo étnico, nação ou nacionalidade socialmente mais importante do que os demais.

Metafísica - investigação das realidades que transcendem a experiência sensível.

Secularização – transformação ou passagem de coisas, fatos, pessoas, crenças e instituições, que estavam sob o domínio religioso, para o regime leigo.



Referência bibliográfica:

FORACCHI, M. M.; MARTINS, J. de S. Sociologia e sociedade. Rio de Janeiro: LTC, 2004.

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